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sábado, 24 de abril de 2010

Estilhaços

Conto publicado no livro Contos de Outono 2010 da Câmara Brasileira de Jovens Escritores e on line na página da editora: http://www.camarabrasileira.com/out10-048.htm


Estilhaços

A fotografia ainda se encontrava no porta-retratos em cima da mesa, exibindo-se indiferente ao olhar que a observasse.


Ela estava lá. E também fora responsável por tudo que acontecera.

Neste momento, não importa mais o que ela representa, os personagens que ela mostra, ou o instante capturado do irrecuperável tempo que se esvaiu de nossas vidas. Não importa nem mesmo os sentimentos vividos ou lembrados por aquelas faces sorridentes, ou o lugar onde se encontravam.. nada importa mais, e é por isso que baixei o porta-retrato, escondendo a foto de encontro à mesa, e porque o atirei à parede, tomado de fúria, depois disso. O instante ainda está gravado em meu cérebro, e com certeza ficará lá como um filme perpétuo a ser projetado na tela de minha mente, enquanto eu viver. Porque nunca me esqueci. Porque nunca me esquecerei.

Ela saía de um táxi, uma chuva fina a alcançava, e preparava-se para correr. Por sorte, eu estava pouco atrás, apressei meus passos e lhe ofereci, com um gesto e um sorriso, carona em meu guarda-chuva até a proteção da marquise mais próxima. Ela hesitou entre a necessidade de se manter seca e a proximidade com um estranho. Mas acho que foi o meu sorriso, acompanhado de uma segurança que me faltara até então, o que conquistou sua simpatia. O destino dela era um pouco mais longo que a marquise mais próxima, motivo pelo qual me regozijei. O meu também o era, e se não o fosse, eu faria com que tivesse sido, tal o prazer que sua proximidade me causara.

Conversamos sobre amenidades, protegidos pelo abençoado guarda-chuva. Então, bem depois, a chuva cessada, passando por uma praça pública onde vicejava um belo jardim,

sabíamos que os nossos caminhos se bifurcariam. E à despedida, ela se postou à minha frente, me deu a mão, e sorriu agradecendo a gentileza. Nossos lábios se calaram e os olhos disseram tudo que havia para ser dito em uma infinidade de possibilidades. Um fotógrafo nos clicou, e nos ofereceu a foto instantâneamente revelada, achando tratar-se de um casal de namorados.

Ela ruborizou-se. Eu gostei da idéia. Comprei duas. Presenteei-a com uma, e fiquei com a outra, esta que atirei na parede. Este é o instante da foto: um casal enamorando-se. O sorriso de ambos, a admiração, a atração e a ternura estampadas em cada face. Foi onde começou nosso relacionamento. Mas onde o mesmo terminara... ainda está fresco e vívido em minha memória, embora eu só queira esquecer os erros cometidos...

Mas não é assim tão fácil. Aliás, nem um pouco.

Tudo cintila com tamanha vividez em frente aos meus olhos que pareço viver ainda os momentos... escuto o barulho do ambiente, percebo os odores exalados no ar, as nuances de luz e sombras, as pessoas que passam ao redor, os carros que cruzam a avenida, o camelô vendendo quinquilharias, e até o pivete que passa correndo um minuto antes de eu ter sido abordado pelo policial e meu mundo ser destruído...

No ápice de nossa felicidade ela vê nossos nomes nos convites de casamento. Sabrina e Túlio. As letras, elegantes, cintilam graciosamente em dourado, prometendo uma vida a dois, a partir da data tão esperada, dentro de poucas semanas.

Ela sorri, feliz. Beijo seu sorriso e fico emocionado. É um dos momentos mais belos de minha vida. Dois dias depois resolvo lhe fazer uma surpresa e passo em seu apartamento. Tenho a chave e entro. O apartamento está vazio, mas ela deveria estar lá. Não está. E o que vejo me assombra e me joga no buraco mais profundo que poderia cair.

Há fotos no chão. Diversas. De uma mulher nua. De um homem nú. De ambos fazendo sexo. O homem me é desconhecido, mas a mulher... é ninguém mais que ela... Sabrina, minha noiva. Meus nervos se abalam, o chão sai de debaixo de meus pés. Busco algum sentido em tudo aquilo e não encontro. No quarto, a cama está desfeita, uma garrafa de vinho aberta e vazia, e por cima dos lençóis, a foto rasgada, aquela mesma foto daquele instante na praça...

A explosão de ira seca minha lágrimas ainda na fonte e endurece meu coração, engessando todo e qualquer sentimento. Saio dali, jurando para mim mesmo que nunca mais a veria.

À noite me ligam do hospital, a telefonista relata que Sabrina está internada e que pede para me ver. Fico irredutível, digo que não sou parente, não quero saber e não irei até lá. Dia seguinte, cancelo todos os preparativos do casamento, me mudo para um hotel, dou ordens à minha secretária e ao porteiro do prédio em que trabalho para não deixá-la entrar, caso apareça. Não atendo suas ligações. O rompimento é total. Não há volta. Não há perdão.

Nos dias seguintes chegam mensagens escritas e de voz, e-mails, cartas, bilhetes. Ignoro tudo. Uma semana depois, enquanto vago a esmo pela rua, um agente policial me reconhece e me detém. Pergunta-me sobre Sabrina. Estranho, e digo que não a vejo mais há cerca de duas semanas. Ele me ordena que o siga até a delegacia. Sem escolha, o faço sem nada compreender. E lá, o investigador responsável me conta que ela fora brutalmente estuprada uma semanas antes, e apresenta o laudo de corpo delito atestando o estupro. Fora um marginal, apelidado Tizil, agora preso. Ele a obrigara a tirar as várias fotos encontradas no apartamento dela. Em seu depoimento ela disse que ele entrara para assaltar a casa e já estava saindo com várias coisas, quando vira a foto dela comigo, no porta-retratos. Então ele voltou...

Senti estar vivendo um pesadelo interminável.

Minha memória vagou rapidamente ao passado, após ouvir o nome do criminoso... Numa noite, voltando do trabalho, próximo a um bar, socorri uma mulher que estava sendo agredida e roubada por um vagabundo. Soquei-o e libertei a vítima... mas não me lembrava disto até este momento.

- Tizil, guarde bem este nome... – gritara o malandro caído ao chão, enquanto eu me afastava o mais rápido que podia.

– ...pois você vai lamentar o resto de seus dias...

Não dei ouvidos e esqueci-me completamente do fato. Até este momento.

Era um pesadelo interminável o que vivia. Sabrina não me traíra, fora vítima de um estupro... O remorso e o arrependimento rasgaram meu coração: ela chamara por mim, pedira minha ajuda, implorara para que fosse até ela. E eu, furioso por um engano, não a atendi.

- Preciso ir até ela. – disse, já saindo, mas o investigador postou-se à minha frente e me impediu.

- Não pode, e é por isto que está aqui.

- Como? Não posso? O que quer dizer?

- Ela foi encontrada nesta noite... morta em seu apartamento. Overdose de tranqüilizantes e soníferos.

Não pude conter as lágrimas.

-Não. Não posso acreditar...

Quanta dor física e emocional ela não teria sentido, até seu último momento de desespero... e eu, em minha cegueira egoísta, me descobria agora como um sujeito bruto e insensível.

Volto atordoado para casa, o porta retratos ainda está em cima da mesa. Atiro-o contra a parede. Mas logo em seguida sangro os dedos nos estilhaços tentando recuperar a foto. Minha dor não é física, mas é real, forte e indescritível...

Um julgamento errado e tudo perdido... para sempre... lamento a perda e a ausência, a dor e a separação, a solidão, o abandono, e a morte...

Caio de joelhos no chão, sem forças, o rosto molhado de lágrimas, segurando em uma das mãos a foto na praça, a nossa foto.

Apenas a escuridão me alcança agora.

Sinto que não há mais nada para viver ou sentir.