O primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com sangue, que foram lançados na terra; e foi queimada a terça parte da terra, a terça parte das árvores, e toda a erva verde. Apocalipse 8:7
E o
resto das árvores da sua floresta será tão pouco que um menino as poderá contar. Isaías 10:19
Eu observava assustado aquele poderoso par de olhos que pareciam me atravessar e ler de forma clara e transparente toda minha história pessoal, meus erros, pecados, vergonhas e fracassos. Não havia como me esconder. Senti-me nu e envergonhado. Mas aqueles olhos se mantinham firmes, buscando até a última gota da verdade de minha história e da humanidade.
Parecia responsabilizar o exemplar que estava à sua frente por todos os erros da espécie. Senti medo. Meu corpo preparou-se para lutar, mas ao avaliar minhas possibilidades frente às suas garras, resolvi desistir. O seu olhar me pesava, forte e implacável, e senti que, se estava sendo julgado, nada tinha em minha defesa a apresentar, e logo seria condenado; pior, com quase toda certeza, executado.
Não esperei mais tempo. Corri. Feito um louco. Achando que poderia escapar e me por a salvo. Ledo engano. Ouvi o barulho das asas abrindo-se, e numa fração de segundos, ainda correndo, senti as garras em meus ombros e fui içado ao ar pela majestosa águia, que alçou v
ôo por altitudes para mim desconhecidas. Tentei me debater, mas um grito da ave me advertiu que, se caísse, seria morte certa. Resignado, mantive-me quieto. Enquanto estava no ar, pelo menos, me mantinha vivo.
Das estradas onde percorrem as nuvens e as águias, observei uma imensidão verde tal qual nunca antes avistara: um oceano de árvores por todos os lados, até onde a vista alcançava. De vez em quando, uma nuvem se postava em nosso caminho e nos cercava com suas brumas e gotículas; quando estava a se dissipar voltávamos a enxergar a paisagem. E ao longo do vôo fui vendo que o verde da terra era consumido de muitas formas, e em seu lugar, a terra ia sendo tomada por desertos e cidades humanas.
A águia deu um vôo rasante por cima de um pedaço de floresta, e quase se paralisou no ar para que eu pudesse assistir o que ali se passava: vi homens caçando e máquinas derrubando árvores às centenas; peixes boiando, mortos na superfície de rios e lagos, e após um precipício, sobrevoando o mar, vi manchas negras à superfície do oceano, contaminando as criaturas aquáticas. Voltamos à costa, e à medida que fomos avançando, os desertos aumentavam, e as cidades iam diminuindo, sendo abandonadas.
Deduzi que a águia estava voando sobre uma linha do tempo, rápida o bastante para podermos observar, em um instante, o que acontecera durante eras à paisagem do planeta. Pude ver então que poucos humanos restavam. Brumas vieram sobre nós e dificultaram nossa visão. A águia então mergulhou de volta a terra, tentando melhorar a possibilidade de enxergar a paisagem, o que conseguiu, e pude fitar, num imenso deserto, uma minúscula ilha verde, onde fui jogado. Vi-me cercado de árvores, e um grande silêncio reinava. Pensei estar a salvo num primeiro momento, mas enxerguei os olhos do tigre no meio da vegetação. Sim, eu tinha sido condenado pelos meus pecados e os de minha raça. Era por isto que a águia me atirara àquele lugar. Estava conformado. Morreria em paz.
Mas um minuto antes do tigre me alcançar, o irritante barulho de motoserras e tratores nos alcançaram, paralisando-nos.
Oh, não - pensei desesperado - não derrubem o bosque, não resta no planeta mais nenhuma área verde... mas árvores caíam por todos os lados, e por fim, se tornaram apenas um tapete verde sob nossos pés. Procurei pelo tigre e o avistei ao longe, correndo, fugindo pelo deserto.
Reparei que nas máquinas não havia pessoas. Eram máquinas-robôs. E agora avançavam em minha direção.

Horrorizado, acordei trêmulo, o suor escorrendo pelo corpo, o coração batendo num ritmo frenético. Levei horas para me acalmar. Passei dias apenas observando o horizonte e reavaliando meu mundo, minha vida e prioridades.
Eu observava meu jardim, ávido por admirar atentamente cada nuance das variadas cores das plantas e flores exóticas ali existentes.
Espécies oriundas de várias regiões do planeta foram cuidadosamente selecionadas para coexistirem em equilíbrio num mesmo ambiente. O resultado de tamanho esforço e minúcia dos biólogos contratados para criá-lo resultou em uma obra de extrema sensibilidade e rara beleza, até mesmo aos olhos dos mais insensíveis.
Uma deliciosa fragrância emanava pelo ambiente, produzindo relaxamento e bem-estar. Eu procurava aspirá-la e tornar este ato um momento sagrado. Fechava os olhos, sentindo meu espírito
O meu jardim é particular e privado. Além de mim, apenas pouquíssimas pessoas quando convidadas em ocasiões especiais têm a honra e o privilégio de contemplá-lo. Ainda assim, a uma distância segura e por poucos instantes. Não posso permitir que o toquem. Ele é para ser admirado. Nunca profanado. Não mesmo.
Muros o cercam e o protegem em todo seu espaço, no qual percorro os olhos em todas as direções. A hera avança, espalhando o verde pelo muro, como se espalhasse a vida.
Sempre contemplo o meu jardim. É meu belo lugar de descanso, de isolamento e reflexão. Durant
e estes poucos momentos de minha vida, é a parte que me pertence do mundo natural, é o que me sobrou para vivenciar.
É minúsculo, frente à imensidão das exuberantes florestas outrora existentes. Nelas sim, podia-se sentir a aventura de penetrar em um mundo vasto e desconhecido, onde surpresas poderiam nos aguardar a cada passo, onde tudo nos encantava, desde as árvores e flores, aos pássaros e animais, do azul esplendoroso do céu às águas cristalinas de fontes, rios e lagos. É o que me sobrou.
As grandes selvas assustavam até os mais corajosos, enchendo-os de temor. Temiam pelo desconhecido, pelo isolamento que elas proporcionavam, pelas surpresas e até mesmo pela morte que poderiam encontrar se não a respeitassem. Grandes animais carnívoros ou mesmo pequenos seres venenosos ali coexistiam e podiam causar encontros assustadores.
Para um explorador caminhando por horas ou dias, encontrar água também podia ser difícil. Embora rios e fontes fossem ali encontrados entremeados na extensão do verde, alguém poderia morrer de sede sem a encontrar. Somente os aventureiros mais experimentados a encontravam, ainda que dentro de plantas que a armazenavam...
As sagradas e gigantes florestas, berços de inúmeras e diversas formas de vida da Terra, tombaram pela ganância e indiferença humana. Aqueles bosques nos quais em meus sonhos, sou um explorador ávido, apaixonado e aventureiro, buscando cada nuance, como um amante tentando abarcar com o olhar toda a nudez e extensão da mulher amada, aquelas áreas verdes tão desejadas, não existem mais. Meus ancestrais as extinguiram, derrubando-as com serras e machados e queimando até a última das plantas, extinguindo seus seres, meus pequeninos conterrâneos de várias espécies, irracionais sim, mas parte da imensa teia da vida terrestre.
Secos ou envenenados, rios e lagos também se foram. Pouco restou: mesmo o ar que hoje respiro não é mais o ar fresco e vigoroso de outrora, mas enpesteado com a fumaça das indústrias, espalhando uma morte lenta e certa...
Observo o meu jardim: delicado e belo, precisa de proteção e cuidados quase diários.
Ontem, alguém poderia se isolar em uma mata. Hoje, é preciso isolar um pedacinho de verde, para que este sobreviva no meio da terra devastada, herança das muitas gerações passadas.
O meu jardim é meu recanto. Em sua pequenez é majestoso por lembrar o que foram os imensos aglomerados verdes do passado.
Hoje sou um homem rico, muito rico, e é apenas por isto que posso me dar ao luxo de ter um pequeno jardim. As plantas hoje são extremamente raras e caras, estão em extinção, são exóticas. As poucas espécies e exemplares existentes foram manipuladas geneticamente para salvá-las do extermínio, estão nas mãos do governo, de centros de pesquisa e de raríssimos abonados... como eu.
Meu jardim...
Posso tê-lo na palma de minha mão. Com um leve borrifo, uma tempestade agita toda sua superfície, inundando-a. Admiro-o mais uma vez em plena luz, agradeço ao criador sua beleza e perfeição, antes de trancá-lo.
Cuidadosamente insiro a pequena caixa de vidro em seu compartimento climatizado e iluminado artificialmente. Aciono os sensores automáticos.
Coloco minhas roupas especiais, as máscaras e protetores, ligo os filtros e conversores de oxigênio, e vou lá fora, no exterior, pois é mais um dia de trabalho e eu, mesmo sendo um homem privilegiado, volto à minha realidade...



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