Conheça o Livro Raízes e Asas

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quinta-feira, 30 de abril de 2009

O Invasor de Memórias







- Herói! Herói! Colian é nosso herói! – Os empregados entoavam em coro, eufóricos, reunidos em frente ao edifício.

No 15º andar do escritório situado na Avenida Paulista, Torso ouvia atento, observando que seu patrão, Colian, estava feliz e orgulhoso de si mesmo. Derrotara seu maior rival, Jandro, no disputado jogo político que reinava por trás dos bastidores da eleição para presidente de uma das maiores empresas latino-americanas de design industrial, a Tech Arts, cujos tentáculos se estendiam desde a produção de relógios e celulares, passando por carros, aviões e navios, até à produção de chips e robôs domésticos e semi-industriais.

O sucesso chegara para Colian. Os efeitos da vitória começaram a surtir: sua promoção imediata para o departamento dos executivos mais bem sucedidos, um melhor salário para si e para seu assessor, Torso; uma nova sala, motorista particular, passagens aéreas, viagens pelo mundo. Sua auto-estima e seu ego estavam inflados, creditando toda a responsabilidade do sucesso obtido à sua própria esperteza e inteligência, o cegando para qualquer outra explicação.

Por um rápido instante, Torso sentiu inveja dos aplausos, das pessoas gritando o seu nome, o adorando e desejando serem suas amigas. Mas foi apenas por um curtíssimo instante. Sabia que não podia ser assim. Não com o poder que possuía.

Calculara bem a situação e avaliara perfeitamente a personalidade de Colian. Sentiu-se satisfeito consigo mesmo. Seu patrão levara toda a fama, e ele ficara na obscuridade, conforme planejara.

Tinha de ser assim. Iria galgando aos poucos os degraus para posições de poder, sem contudo, aparecer na linha de frente. Na verdade, sempre soube que os verdadeiros poderosos não eram aqueles conhecidos pelo público. Estes eram apenas aqueles que emprestavam seu nome, e eram manipulados pelos verdadeiros cérebros.

Deu um sorriso, ao esticar os dedos das mãos. Podia quase visualizar os fios delicados e invisíveis com que manipulara pessoas e acontecimentos. Sabia ser o provedor do sucesso de Colian.

Fora fácil para Torso descobrir a conspiração entre os diretores da empresa, encabeçada secretamente por Jandro, também diretor e candidato à presidência da Tech Arts.

Jandro corrompera três dos sete outros diretores e os convencera a elegerem-no e apresentarem relatórios falsos comprometendo a atuação de Colian na empresa. A eleição contava também com a votação dos empregados, mas estes simpatizavam com a linha de trabalho de Colian, idolatrando-o.

Jandro, entretanto, não imaginara que seu segredo tão bem arquitetado estava acenando para chamar a atenção do insignificante recém contratado assessor de Colian: um desconhecido e brilhante ex-aluno de Harvard.

Torso, sem grande esforço, pôde visualizar o jogo de poder que circulava nos bastidores da eleição e a tramóia de Jandro para derrubar Colian.

Torso nascera com um poder único, e aprendera a tirar vantagem dele. Podia extrair conhecimento da memória de outros, como de sua própria. Não podia ler os pensamentos, que eram voláteis ao extremo e não se fixavam na mente, mas podia absorver a memória, pensamentos retidos e fixos no cérebro, cristalizados, que eram a base do conhecimento e de onde partiam todas as considerações para a tomada de decisões. Assim, crescera sempre sendo o melhor aluno da classe, pois seu conhecimento vinha direto do cérebro do professor presente.

Pôde absorver a memória, profissional e pessoal, de todos os diretores. E soube o ponto fraco de cada um deles.

A partir daí, sua estratégia fora diferente para cada um dos diretores corruptos e uma especial para o próprio Jandro. Dos três diretores, um recebeu um e-mail anônimo relatando um antigo segredo familiar: a morte suspeita de seu pai, ex-diretor e acionista da empresa em um assalto inexplicado em uma viagem, onde apenas o filho, atual diretor, sobrevivera; outro recebera uma fotografia de seu amante homossexual que sua mulher adoraria conhecer; e o terceiro, um relatório recém-elaborado pela área de finanças, de suas despesas pessoais pagas pela empresa em viagens de negócios. Ali constavam de forma camuflada, pagamentos a bordéis, cassinos, e mesmo despesas superfaturadas e fraudulentas. Em cada uma das correspondências, a ameaça:

Apóiem a corrupção nas votações e seus dias na Tech Arts estarão contados!

Para Jandro, sujeito corrupto, sagaz, perigoso e muito ambicioso, não seria tão simples. Ele não pararia tão facilmente sua corrida à presidência. Antes procuraria investigar todas as pistas que o levassem ao autor da ameaça. Não que Torso não fosse também inteligente e esperto o suficiente para apagar todas as pistas que levassem até ele, mas não queria um jogo de perseguições. Sua estratégia era minar de um só golpe toda a força do inimigo.

Por isto é que resolvera jogar a isca, prontamente engolida: fizera circular entre os empregados de nível inferior a idéia de que um dossiê contendo todas as suas falcatruas estava preparado na mesa de Colian para ser apresentado na próxima reunião da diretoria. Sendo claro que Jandro subornara ouvidos alheios pelos corredores da empresa, não demorou para que a informação chegasse até ele.

Enlouquecido, invadira a sala de Colian em sua ausência e revistara todo seu escritório. Nada encontrara. Enfurecido, agrediu Colian no corredor, primeiro verbalmente e depois com um soco no rosto. Tudo fora gravado pelas câmeras de segurança.

De forma simultânea e acidental foram ao ar, na rede de TV local, duas estranhas reportagens. Numa delas, Jandro chamava a todos os outros componentes da diretoria de incompetentes e estúpidos; noutra relatava o quanto estava manipulando os preços das ações da empresa em um esquema fraudulento com investidores internacionais, a fim de se tornar o maior acionista. Tal gravação fora feita de forma clandestina por um cinegrafista amador, que surpreendentemente o flagrou em uma conversa com um de seus capangas, num bar, e a revendeu à rede de TV.

O conceito de Jandro perante os outros membros da diretoria despencou latrina abaixo e fora feita uma menção para afastá-lo da diretoria, por unanimidade.

Bastou Colian efetuar alianças com os diretores, e prometer aos empregados uma parcela maior da divisão nos lucros, junto a melhores condições de trabalho, e sua vitória fora garantida.

Agora, o caminho estava livre. Torso atingira a presidência e tinha seu testa de ferro: Colian. Alguém que era facilmente manipulável para Torso.

Sorrira para si mesmo. O seu poder aumentara.

Ainda comemorava interiormente sua vitória quando percebera em sua mesa uma estranha correspondência. Era endereçada a ele e não à Colian. Surpreso, abrira imediatamente. Lá dentro, apenas um cartão de um estacionamento com a seguinte frase escrita no verso:

Você procura uma resposta, Torso. Nós a temos!

Torso sentiu seu estômago revirar-se. Aquilo o atingira no âmago de seu ser. Uma resposta. Sim, era o que buscara a vida inteira: uma resposta para si mesmo, para sua existência, sua habilidade, sua família. Fora criado em orfanatos diversos. Não conhecera seu pai. Tinha uma vaga lembrança de sua mãe, em um evento trágico onde ela chorava muito ao ser afastada de si, levada por dois homens. Ele também gritara e chorara, mas fora agarrado e levado de volta ao orfanato. Nunca mais a vira. Tivera mentores, mas nunca uma família.

Uma resposta fora o que sempre buscara, sem êxito. Agora recebia este enigmático cartão.

Girou-o na mão.

Pare Bem, Estacionamento à Av. Pres. Getúlio Vargas, 1456, centro.

Havia um número de celular. Ligou. Uma gravação automática para recados. Torso desligou antes do fim da mensagem.

Não seria mesmo tão fácil.

Duvidou. Uma brincadeira de mau gosto, ou alguém que desejava vingar-se. Mas não tinha inimigos. Ninguém lhe queria mal. Ninguém sabia de seu poder. Ou existiria algum desconhecido que saberia? Tentou esquecer o cartão, mas a idéia ficou lhe martelando por dias. Então resolveu que precisava tirar a limpo aquela história. Não tinha medo. Fosse o que fosse, era melhor que continuar na escuridão de seu passado.

Dirigiu-se ao grande estacionamento. Procurou entre os empregados. Mostrou o cartão. Ninguém entendeu sobre o que falava. Até que disse seu nome. Então um dos manobristas o reconheceu.

- Torso? Seu nome é Torso? – Inquirira desconfiado. – Que nome estranho, homem. Tão estranho quanto o sujeito maluco que me pagou R$ 500,00 para guardar uma caixa para você, há cerca de duas semanas. Ninguém faz uma oferta dessas em vão, meu camarada. Não quero saber o que tem naquela caixa, não. Aceitei as quinhentas pratas, mas nem botei a mão naquilo. Não ia querer minhas impressões digitais ali, sabe como é, os tiras estão sempre por aí, dando batidas.

Torso perscrutou o homenzinho. O que dizia era verdade. Podia ver a figura do velho homem, ombros largos, porte militar, em sua memória.

- Onde está a caixa? – perguntou Torso.

- Na prateleira lá atrás, dentro de uma lata velha de tinta, entre as latas de cera e óleo. Pegue logo e se manda, mané. Não quero encrencas pro meu lado.

Torso caminhou até a prateleira, destampou uma lata redonda de dezoito litros e pegou uma caixa onde estava o seu nome. Olhou para os lados, viu que ninguém estava lhe prestando atenção, entrou em seu carro e partiu.

Na primeira oportunidade após afastar-se, estacionou junto ao meio fio e abriu a caixa.

Brinquedos infantis. Fotos antigas e amareladas. Uma casa de campo. Uma criança. Um casal. Uma mulher... É minha mãe...! São meus pais. Sou eu!

Seu passado gritava naquelas fotos. Olhando sua mãe, lembrou-se dolorosamente de ter sido afastado dela aos prantos.

Covardes. Separaram mãe e filho.

Seus olhos marejaram. A tristeza revirou-se em seu íntimo, misturando-se à revolta.

Olhou todas as fotos até deparar novamente com um outro cartão.

Padaria Sempre Viva, Bairro Português.

No verso, a frase escrita à mão:

Apresse-se. Aqueles que roubaram seu passado estão vindo em busca de seu presente.

Torso ligou. De novo, secretária eletrônica. Teria que ir ao local.

Quando se preparava para dar partida no carro, seu celular tocou. Sua secretária disse que ele precisava comparecer imediatamente ao escritório. Era urgente.

Mudou os planos para o momento. Tinha que voltar à empresa. Mais tarde tentaria descobrir o autor da mensagem. De qualquer forma, isto lhe daria tempo para recuperar-se. Estava abalado.

O escritório ainda vivia em clima de vitória. Colian nem mesmo fora trabalhar. Comemorava com sua família.

Mal entrou na sua sala, fora abordado por dois sujeitos de uniforme militar. Um deles tomou a iniciativa:

- Senhor Torso? Temos uma intimação para que nos acompanhe a esse endereço imediatamente, por favor. – estendeu-lhe um ofício de intimação para comparecer numa base militar.

Torso, desconfiado, leu o papel, riu e tentou devolvê-lo.

- É uma brincadeira, não é?

- Não, senhor. Isto é uma Intimação decorrente de um Inquérito Policial Militar.

- Mas eu sou civil. Não sou um militar.

O sujeito deu de ombros.

- Sinto muito, senhor. Mas terá que nos acompanhar.

Torso sondou os militares. Soldados, aspirantes à carreira de oficiais. Nada sabiam a seu respeito, a não ser seu nome e endereço, por que estava descrito no papel. Já haviam feito estas abordagens antes. Estavam dentro da lei. Iriam levá-lo à força, se necessário.

- Ok – disse Torso.

Assinou o recibo e os acompanhou.

E agora, o que será isto?

O prédio histórico no centro da cidade onde se situava a base militar não revelava o imenso aparato tecnológico que se encontrava em seu interior. Torso olhou para as câmeras de vídeo. Displays instalados nas paredes internas monitoravam todo o espaço ao redor do prédio, da rua ao pátio, e mesmo a movimentação interna. Terminais de computadores e sensores silenciosos de presença estavam instalados em áreas de passagem. Todas as portas possuíam fechaduras eletrônicas.

Um elevador levou-o à sala do diretor. Um grande display figurava como uma mesa de trabalho, e exibia ícones, imagens, textos e mensagens on-line de forma aparentemente aleatórias.

Um militar corpulento estava sentado por detrás da grande mesa.

- Senhor Torso – disse – sou o Tenente Malcon. Queira nos desculpar a imensa urgência com que o convidamos a comparecer a este quartel militar, mas é uma urgente e sigilosa questão. Não podíamos esperar.

- Do que se trata?

- Olhe para estas fotos – disse Malcon, tocando a superfície da mesa que abriu e espalhou dúzias de repugnantes fotos de um soldado morto, cujo corpo ensangüentado encontrava-se estirado ao chão. O sangue se espalhava por uma dezena de objetos caídos ou desarrumados ao redor, evidenciando uma luta antes da morte.

- Sinto muito pela perda de seu homem – disse Torso, ainda insatisfeito por ter sido arrastado até ali – mas não compreendo minha presença neste local. Sou Assessor do Presidente Colian, da empresa Tech Arts.

- Ora, Torso, posso chamá-lo assim, não é mesmo? Creio que não há mal algum em sermos um pouco informais neste momento. Pode me chamar apenas de Malcon, se preferir.

Torso concordou com um leve balançar de cabeça. Esperou que continuasse.

- Estamos a par de suas atividades extras, fora da Tech Arts. Sabemos que você trabalha às noites na agência de detetives particulares Revelações, não é mesmo? E que seu sócio é ninguém menos que o Investigador Joseph Carlins da Polícia Estadual.

Torso mudou de posição na cadeira. Sentiu-se desconfortável. Fora pego de surpresa. Precisava ganhar alguns segundos para sondar o tenente. Retrucou:

- Minha atuação na Revelações se resume às questões administrativas e contábeis. Quanto a investigações, posso ligar agora mesmo para Joseph e solicitar que venha imediatamente para cá, se quiser. Ele é o mais indicado para este serviço.

O tenente sentira um leve formigamento em sua cabeça. Passou a mão involuntariamente pelos cabelos.

- Não nos subestime, Torso. Sabemos que você inúmeras vezes contribuiu com a Polícia Estadual, através de Joseph, para encontrar respostas a crimes insolúveis, com alto índice de êxito. Sabemos que possui grande capacidade de análise e que tem como hobby participar de campeonatos de jogos de estratégia. E ainda, escreve contos de detetive para a Mistery, uma revista eletrônica on line, sob o pseudônimo de Raposa Negra. É um grande estrategista, Torso. Por isto o trouxemos. Mas não queremos o seu sócio e nem a polícia por aqui, nos criando propaganda negativa. Esse foi um crime militar e somos nós quem lhe daremos solução.

Deu uma rápida risadinha forçada e disse gravemente, mudando de imediato seu semblante:

– Ainda que tenhamos alguma ajuda externa: a sua!

Torso o sondara completamente. Ele não sabia nada mais além do que dizia. Recebera as instruções de convocá-lo e coagi-lo a colaborar com as investigações. Não sabia nada mais a seu respeito. Ficara aliviado. Pensara que seu poder havia sido descoberto.

- Tenho que entregar um relatório nos próximos dias, Torso. Ficaremos nesta base até encontrarmos um culpado. Espero que esteja afiado. Tenho outros compromissos. E creio que você também. Sejamos práticos, então. E para mostrar nossa gratidão, arcaremos com seus honorários como detetive.

Torso permaneceu inalterado. Compreendendo que se encontrava exposto e encurralado, se deu por vencido e incorporou a autoridade de um especialista:

- Imprima estas fotos, tenente. Ordene que seu oficial de investigações me acompanhe ao local do crime e me forneça todas as informações necessárias. Também ordene a todos que se encontram na base para se reunirem no pátio daqui a duas horas.

- Pra quê?

- Invente um motivo qualquer. Uma menção oficial sobre o assassinato, um simples exercício de comando, não importa. Se o culpado estiver presente, isto diminuirá suas certezas. Talvez faça algo impensado no resto do dia, e isto pode nos dar margem para desconfiar de quem seja e agarrá-lo.

Após duas horas de idas e vindas pela base militar, acompanhado do Oficial de investigação, Torso já sabia que algo estava errado. O soldado morto estivera apenas de passagem naquela base. Poucos tiveram contato com ele, e estavam limpos. O corpo já fora transferido para outra base.

Procurara motivos. Imaginara situações.

Nada!

Quando todos os integrantes do esquadrão estavam em formação no pátio, buscara analisar suas memórias.

O burburinho de muitas mentes pensando em diferentes coisas o incomodou. Sentiu os pulsos cíclicos de duas centenas de pensamentos atrapalhando sua concentração.

São tantos. Como posso sondar todos simultâneamente? Nunca fiz isto antes.

Respirou fundo. Fechou os olhos. Concentrou-se. Voltou a abri-los. Sentiu a energia fluir de seu cérebro, ligando-se ao primeiro homem da tropa, depois deste para o segundo, e assim sucessivamente, até que uma imensa teia se formara, incluindo a todos ao seu redor.

Os militares sentiram, a princípio, um leve formigamento na cabeça, seguido do início de uma leve dor de cabeça. Torso sentiu que tinha de ser rápido. Não conseguiria manter por muito tempo a ligação. Ela lhe custava uma parte de sua energia vital.

Lembrou-se das buscas na internet por palavras-chaves, seria tão mais fácil se o mesmo fosse possível. Mas isto não funcionava. Visualizou a imagem do corpo ensangüentado e olhou para o grupo. Foi então que viu esta mesma imagem na memória de muitos ali. Mas a cena estava vazia de seqüências, não era contínua, não tinha passado ou futuro. Significava que aqueles indivíduos apenas viram o corpo ensangüentado. Não que tinham ligação com ele. Olhou para a foto do soldado e para o grupo. Apenas alguns poucos indivíduos tinham tido contato pessoal com o mesmo. Ainda assim, por pouco tempo.

Nada!

Viu ao longe, um gato arrepiar-se todo ao ver um dos cães existentes na base. Este temera e demonstrara isto claramente. O cão latiu.

Torso olhara a formação e lembrou-se do medo. Sim, já vira antes pessoas sentindo medo. O medo emanava de todos os seus poros e formava uma clara imagem de serem mais fracas que seus oponentes. Talvez por isto alguns predadores assustassem suas vítimas antes de atacá-las. Elas ficavam paralisadas ou cometiam atos estúpidos. Tentaria isto agora. Poderia facilmente observar o medo sendo exalado de sua fonte, se o criminoso em questão estivesse ali. Mesmo indivíduos ousados e corajosos o exalavam, embora o controlassem.

Criou a imagem mental do assassino sendo descoberto e preso naquele mesmo dia e lançou-a às mentes da tropa.

O hino nacional começara a tocar.

O tenente anunciou que o assassinato estava solucionado. O hino começara a tocar.

Torso sentiu o alívio das mentes, a aversão à morte ou à cadeia, ou a pura indiferença.

Nada!

O assassino não estava lá. Mas encontrara algo mais. Descobrira um indivíduo que possuía um sistema límbico superdesenvolvido, sinal de que era acostumado a criar histórias e subterfúgios... e a mentir. Desfizera a teia mental e se concentrara naquele homem. Encontrou algo não relacionado à morte do soldado, mas que o atraíu muito mais. Encontrara referências a projetos secretos do governo.

Segredos militares. Pesquisas científicas. A criação da bomba nuclear. O programa espacial brasileiro, sabotado inúmeras vezes. Desenvolvimento de armas. Sistemas de defesa. Estratégias de ação em caso de ataques inimigos...

E ainda... o que mais lhe chamara a atenção... ele ouvira falar de um Projeto Cérebro criado duas décadas antes, embora não soubesse do que se tratava. Estava ali para tentar descobrir maiores informações.

Era um traidor, um espião da CIA, a agência americana de inteligência, a qual sempre visava a supremacia dos EUA no continente. Torso se alarmara e se surpreendera. Nunca imaginou algum dia topar com um espião, mas ali estava um em carne e osso, fora de uma guerra, agindo fria e calculadamente, prejudicando toda a nação, levando-a a desgraças militares e tecnológicas. E haviam provas guardadas num armário nos alojamentos. Onde se encontrava a chave, fora fácil desvendar.

O espião planejara invadir o prédio do Comando Militar, à procura de informações. Torso sentiu que precisava fazer algo a respeito.

Antes de Malcon dispensar a formação, Torso se aproximou e impôs que todos fossem levados a fazer exercícios militares na periferia da base. Assim, se afastariam e teria algum tempo para agir em segredo.

Após se distanciarem, Torso fora até o alojamento dos oficiais. Encontrou a chave e a escondeu em seu bolso. Passou pelo setor de correspondências e datilografou rapidamente um papel com três frases:

Há um espião nesta base. Revelou segredos militares e continua em missão.

Alojamento dos Oficiais.

e o coloca junto da chave, dentro de um envelope de memorando, endereçado ao Comando Militar. Desta forma, manteria seu anonimato.

Em seguida, retornou ao pátio. Levara menos de dez minutos. Ninguém desconfiara de nada.

- Você gostaria de entrevistar a todos os integrantes da base? – perguntou o Oficial de Investigação.

Torso já sabia que ele o fizera antes, e que em sua opinião, o assassino estaria entre recém transferidos para a base, pois confiava em seus colegas mais antigos.

- O que acha de focar os mais recentes integrantes da base? – disse Torso aparentando indiferença.

A sugestão foi prontamente aceita.

- Foi uma perda de tempo – disse Torso, momentos depois, para o Oficial de Investigação – os recém transferidos estão limpos.

- Então ainda não temos nada.

- Olhe no livro de registros da portaria. Todos que estiveram na base no dia do assassinato estavam presentes no pátio?

- Hum... faltam apenas alguns poucos. Há uma equipe de seis indivíduos em manobra de campo. Estão fora da base.

- E quanto à indivíduos externos? Quantos civis entraram na base por algum motivo?

- Neste dia apenas dois. O carteiro e o motorista do caminhão de alimentos.

- Foram checadas suas identidades?

- São velhos conhecidos. Não há razão para desconfiar deles.

- Então estamos reduzidos à equipe que se encontra fora da base. Traga todos as fichas de identificação e tudo o mais que achar a respeito deles.

Em cinco minutos tudo estava espalhado pela mesa.

- Dos seis indivíduos, apenas dois foram transferidos para esta base há menos de seis meses. Estes são soldados rasos.

- De onde vieram?

- Vejamos... um deles, de uma base em Brasília. O outro... do Rio de Janeiro.

- De onde veio o soldado assassinado?

- De... BRASÍLIA!!! – o oficial arrepiou-se.

- Bingo! – exclamou Torso.

De volta à sala do tenente, Torso o ouvira confirmar aquilo que já suspeitara.

- Encontramos uma faca, que nos parece ser a arma do crime, bem como objetos que ligam o soldado em questão ao assassinato: roupas sujas, um relógio quebrado e até um cordão arrebentado. Tudo com rastros de sangue. Seguiram para perícia técnica.

- E quanto ao suspeito?

- Enviamos outra equipe para prendê-lo. Foi um belo trabalho, Torso. Ainda mais para apenas uma tarde de trabalho. Como conseguiu tão rápido?

- O mérito é todo do seu brilhante Oficial de investigação. – desconversou – Ele sugeriu a linha de investigação e foi perspicaz o suficiente para seguir sua intuição.

- Hum... bem, se você assim o diz. Deixemos agora tudo a cargo de nosso pessoal administrativo. Acredito que estamos liberados. Eu posso seguir para meu compromisso e você de volta à sua empresa.

Estendeu-lhe uma folha de cheque e se levantou.

- Isto com certeza paga seus honorários. Gostaria de uma carona?

- Se possível.

Naquela noite, antes de dormir, Torso ficou ruminando seus pensamentos. Fora um dia cheio. Quase adormecendo, se lembrou de algo que o atormentara no restante do dia. Ambos, assassino e vítima eram militares transferidos recentemente, provenientes de uma mesma base.

E de todos ali presentes, ninguém conhecia Torso de fato. O próprio Malcon nunca ouvira falar dele, até que recebera suas ordens de trazê-lo à base. Recebera informações, ainda que mínimas, para contatá-lo. Isto revelava algo. Alguém na hierarquia acima do tenente, em outro lugar, sabia algo a seu respeito. Acompanhara seus passos, o pesquisara, repassara informações.

Estou sendo observado. Sabem sobre meu poder? Preciso ter mais cuidado! Conhecem minha vida particular. E que diabos é, afinal, o tal Projeto Cérebro? Aqueles que me observam devem saber a resposta. Talvez eu possa encontrá-los. Terá sido o espião capturado?

Na sala do alto comando, dois coronéis conversavam entre si. Um terceiro homem, à distância, os monitorava em sigilo, colocando em risco sua própria existência.

- Foi confirmada a denúncia? – Inquiriu o primeiro militar.

- Sim, foram encontradas as provas no armário do oficial. – respondeu o segundo – Agora está sendo interrogado. Isto explica as sabotagens que o país vem sofrendo há anos, e põe fim à nossa incessante busca pelo agente infiltrado. Ele estava perto de descobrir sobre o Cérebro, embora não tivesse ainda qualquer informação sobre o projeto.

- Então temos o espião?

- É um fato. Mas o mais importante é a forma como foi encontrado. Ela nos revelou a capacidade de nosso homem.

- Aqueles que tinham algum conhecimento sobre os fatos foram retirados antes de sua entrada na base?

- Todos. Com este homem, não podemos brincar. Mostrou-se bem mais capaz que pensamos. Em poucas horas sondou toda a tropa e descobriu um espião, embora procurasse por um assassino, o qual também encontrara.

- Como planejado, ele não esteve pessoalmente com o assassino.

- Qual é mesmo o nome de nosso super-homem?

- Torso.

Ao entardecer do dia seguinte, Torso ainda ruminava os pensamentos. Algo estava acontecendo e ele tinha que saber o que era.

Primeiro, as revelações sobre sua vida pessoal. Depois, uma intimação militar. Precisava checar se ambos os fatos estavam relacionados entre si, ou porque motivos alguém resolvera lhe pregar uma boa peça.

Partiu em direção à Padaria Sempre Viva.

Havia ali apenas duas atendentes. Uma atendia aos clientes e outra se encontrava no caixa. Havia fila para ambas. Visando não chamar atenção, resolvera enfrentar a fila da atendente. Mostrou-lhe o cartão.

- Sim, senhor – ela disse – esta é a Padaria Sempre Viva. O que o senhor deseja?

Torso não soube o que dizer. Improvisou:

- Gostaria de falar com o responsável.

- O Sr. Joaquim? Sinto muito, mas ele está ocupado em seu escritório no momento. Pediu para não ser incomodado.

- Você poderia lhe entregar este cartão, agora? E dizer que estou aguardando?

A atendente desapareceu por detrás da porta que levava aos fundos. Torso reparou que todo o ambiente estava sendo filmado por câmeras situadas em locais estratégicos.

- O Sr. Joaquim pediu que fosse até ele – acenou a atendente, indicando a porta dos fundos.

- Sente-se, Sr. Torso – disse o português, com um sotaque característico – alguém a quem preciso retribuir um favor pediu-me que o convidasse a este local.

O português discou um número em seu celular.

- Ele se encontra aqui. Venha já.

- Isto tudo é algum tipo de brincadeira?

- Não para mim – disse o português, apontando para a padaria movimentada, e saindo para ajudar no atendimento – tenho muito que fazer.

Torso se viu novamente cercado de mistério. A memória de Joaquim não revelava nada a não ser sua vida distante em Portugal e a luta para se estabelecer em terra estrangeira. Quanto ao homem a quem devia um favor, vira que o mesmo era militar. E muito tempo atrás o salvara de ser morto na fase negra da ditadura pelo qual passara o Brasil. Devia-lhe um favor. Precisava pagá-lo. Thonson. Seu nome era Thonson. Nada mais sabia que o interessasse.

Aguardou por cerca de dez minutos. Então viu pelo monitor de vídeo o movimento de um carro estacionar em frente à padaria. Dele desceu um homem de seus sessenta anos, bem conservado, corpo ainda atlético, porte militar, vestindo roupa social. Cumprimentou Joaquim gentilmente, o qual apontou em direção aos fundos.

Veio em direção à Torso.

- Enfim nos encontramos novamente – dissera Thonson.

- Quem é você e o que significa tudo isto? Por que tanto mistério? – perguntou Torso de forma ríspida.

O Homem deu um sorrisinho irônico.

- Com o seu poder, não terá problemas em descobrir. Mas antes de usá-lo em mim, o aconselho a primeiro ouvir o que tenho a dizer, ou será soterrado por uma avalanche de informações e reações emocionais.

Torso intrigou-se. Então estava certo. Alguém mais sabia sobre ele.

Como pôde saber sobre meu poder?

O homem pareceu sincero aos olhos de Torso, que esperou para ouvir o que tinha para dizer.

- Meu nome é Thonson. Oficialmente, coronel reformado do exército. Extra-oficialmente, membro ativo da Inteligência.

- Disse que já nos encontramos antes?

- Você tinha apenas cinco anos de idade. Nesta época, eu era apenas um capitão. Acabara de ser recrutado para o recém-criado setor de inteligência. E uma de minhas tarefas durante cerca de seis meses fora acompanhar um projeto...

- Cérebro?

- Sim. O caso de uma criança com um fantástico poder...

- Que seria... ? – Torso resolveu dar uma de inocência, para testá-lo.

Thonson irritou-se com a interrupção, mas ao final dera outro sorrisinho irônico.

- Falemos o mais claro e aberto possível para ambos, correto? Este é o momento da verdade, e não precisamos de meias palavras. – olhou novamente nos olhos de Torso e continuou:

- A criança, ela tinha o poder... de extrair conhecimento das mentes alheias.

Torso se sentiu bem pelo fato dele referir-se a uma criança e não diretamente a ele.

- Como ela adquirira este poder, e por quê?

- Ela nascera com este poder. Na verdade fora projetada para possuir este poder. Um casal de neurocientistas possuía um brilhante projeto de pesquisa sobre a mente humana que interessou ao governo militar. Foram amplamente financiados em suas pesquisas, que tiveram resultados insatisfatórios em adultos. Foi quando decidiram testar em um feto. E dera resultados práticos notáveis, ao longo de alguns anos, após o nascimento da criança.

- Mas como conseguiram?

- Seleção e manipulação genética. Injeção de hormônios. O cérebro do feto alterou-se. Desenvolveu novas áreas e aprimorou outras. A capacidade de percepção aumentou drasticamente. Você não foi o primeiro. Outros foram gerados. Mas com seu poder, você foi a única experiência bem-sucedida.

- E com que finalidade?

- Ora, não seja ou se faça de ingênuo, Torso. Você sabe bem que a criança em questão é a sua infância, e facilmente pode deduzir para qual finalidade fora concebida: Enquanto os EUA desenvolviam supersoldados, nós procuramos desenvolver superespiões e supercientistas. Afinal, de que adianta a força bruta diante de um supercérebro? Você seria usado externamente para infiltrar-se como espião em países estrangeiros. Internamente, na perseguição aos descontentes com o regime militar.

- Mas isto não aconteceu.

- Não, ainda não. Você era uma arma por demais poderosa. Tanto que os principais cientistas, Dr. Kevin e Dra. Ross, recusaram-se a entregá-lo exclusivamente aos cuidados dos militares. O primeiro fora morto por traição. A segunda, enlouqueceu e desapareceu nos porões da ditadura. Os militares não tiveram tempo de usá—lo, no entanto. A ditadura estava no fim, e você ainda não era maduro o suficiente para ser útil a eles. Assim, o deixaram por anos à própria sorte. Mas sempre o acompanharam discretamente. Agora, o querem de verdade.

- Por isto fui levado à força para a base militar? Para descobrir um assassino?

- O assassinato fora uma isca para seu recrutamento. Fora forjado.

- Como assim, forjado?

- Não houve assassinato.

- Mas as fotos... pessoas viram o corpo.

- Tudo fora cuidadosamente simulado para fazê-los acreditar. E você sondou lembranças falsas. É tudo.

- Com que fim?

- Procuravam pelo espião. Você o entregou de bandeja, e revelou seu próprio poder.

Torso ficara perplexo. Fora ardilmente enganado e usado.

- E porque somente agora? Porque não vieram antes? Por que você não me contatou antes?

- O seu progresso na Tech Arts mostrou-lhes que você estava fazendo uso de seu poder. E principalmente, que sabia como fazer isto de forma discreta, sem deixar vestígios. Quanto a mim, não podia aparecer antes em sua vida, ou você teria todas estas informações ao seu alcance, e isto seria perigoso para você mesmo.

Os pensamentos do velho homem voltaram ao passado.

- Jurei a alguém que iria deixá-lo em paz, mas protegê-lo em caso de necessidade.

A imagem da mãe inundou a mente de Torso.

- Meus pais...?

- Estão mortos. Sofreram um acidente de carro logo após seu nascimento.

Torso levantou-se num pulo. Não fosse a empatia que sentiu emanar de Thonson, o teria esmurrado. Golpeara a parede, para descarregar sua raiva e frustração. Virou-se de costas para a parede e deixou-se escorregar até cair sentado. Fechou os olhos por um momento.

Abriu-os e encarou Thonson por longos segundos.

Gritou furioso:

- Você está mentindo!

- Em quê? – perguntou como se não fosse nada, apenas para testá-lo.

- A Dra. Ross e o Dr. Kevin.

- Sim?

Torso respirou fundo. Controlou-se, embora lágrimas sorrateiras tivessem deslizado pela sua face. Murmurou pausadamente:

- Eram meus pais.

O silêncio se abateu por minutos entre eles. Torso enfim encontrara seu passado, e este era tormentoso, caindo em sua vida e a desmoronando. Fora usado de forma fria e desumana. Fora concebido em um projeto por seus pais. Mas estes foram mortos. Faria com que pagassem por tudo isto.

- Desculpe-me – disse Thonson – Eu precisava tentar. Não queria atormentá-lo ainda mais com toda a maldita verdade.

Por momentos, o velho militar se sentiu nu, desprovido da carapaça que sempre o impedia de sentir.

Torso se recompôs. Pegou o cartão que o guiara até ali, e leu:

Nós temos a resposta.

- Por que nós?

- Porque somos O Clã, um pequeno grupo rebelde que não concorda com o uso político que tem sido dado à certas questões.

Respirou fundo, e decidira ser incisivo:

- Você poderia ter se poupado muito esforço, se tivesse logo seguido o convite para vir a esta padaria.

- Ainda sou novo neste jogo, Thonson. E eu nem mesmo tinha certeza que estava jogando.

- Agora que sabem o quanto você pode ser útil, não o deixarão em paz. Mas há uma ou outra habilidade que você pode aprender comigo... habilidades militares.

Desta vez fora Torso quem dera um sorrisinho irônico:

- Posso ver.