Foi o olhar da velha senhora o que o fez voltar atrás.
Era um olhar vazio, desesperançado, maculado pela dor e tristeza e que naquele momento traduzia a si mesmo em finitude. Marco compreendeu imediatemente. Um lampejo daquela dor e solidão ecoou dentro de si mesmo. Deteve-se no meio da correnteza de gente indo e vindo pela calçada e foi abrindo caminho, desviando-se de um e outro até aproximar-se dela, sentada no chão, num canto, com a mão estendida em busca de um trocado. Ele observou os cabelos dela: um branco-amarelado pela idade, as rugas profundas de seu rosto, as vestes maltrapilhas e a magreza reveladora de sua necessidade de subsistência. Enfiou a mão em seu bolso, pegou algumas moedas e abaixou-se a fim de as depositar naquela mão estendida.
Foi quando Marcos, sem intenção, a fim de que as moedas não caíssem no chão, tocou com a ponta de seus dedos a palma da mão da velha senhora, entregando-lhe as moedas, que sentiu-se comovido por maior compaixão. Naquele instante sentiu o calor daquela mão pedinte como seria o da mão de qualquer pessoa de sua família.
Meu Deus, - ele pensou - é um ser humano quem está aqui, neste estado de miséria e desalento. Esta pobre senhora poderia ser minha mãe ou avó, e se encontra jogada na calçada, abandonada, sem ter qualquer um que vele por sua vida.
Já cansara de ver mendigos pelas ruas e vez ou outra passava direto sem se importar muito; noutras dava alguma esmola para aliviar um certo sentimento de culpa por olhar alguém em situação tão drástica e nada fazer. Mas nunca sentira algo como agora. Por causa do olhar daquela senhora. Já o vira antes.
Marcos ouviu a senhora agradecer com um Deus te ajude já decorado e recitado mecanicamente inúmeras vezes, mas que revelava gratidão.
Preso à sentimentos contraditórios, afastou-se um pouco, mas uma idéia lhe ocorreu e não permitiu que se fosse: não tinha como minorar o sofrimento daquela mulher pelo resto de seus dias, porque não tinha condição financeira para resolver um problema social imenso como aquele, pois a cada esquina do centro da cidade via um mendigo. Mas e se pudesse lhe comprar a alforria de um dia de liberdade, onde ela não tivesse mais que continuar pedindo e pudesse voltar para casa e descansar um pouco? E se lhe oferecesse o valor que ela demoraria todo o dia para ganhar, se é que viesse a ganhar, estaria ela disposta a abandonar aquela rua naquele mesmo instante e voltar para sua casa?
Marcos calculou: tinha acabado de receber seu salário do mês, podia apertar um pouco as contas e fazer aquela doação. Mas ela aceitaria e compreenderia aquele seu gesto ou não? Marcos agachou-se ao lado da velhinha e disse:
- Senhora, qual o seu nome?
A idosa pareceu não compreender porque um estranho que acabara de lhe dar uma esmola voltara atrás e lhe perguntava seu nome. Sem olhar no seu rosto, respondeu numa voz rouca e cansada:
- Maria, mio fio.
- Ô Dona Maria, vou dar um dinheiro maior pra senhora ir embora pra casa descansar um pouco por hoje. Amanhã a senhora pode voltar. Mas por hoje, quero que a senhora sinta como se já tivesse ganho seu dia e vá descansar. O que é que a senhora acha?
- Qui Deusi ti bençoe, mio fio. Mais num póssu ir imbora, não. Num tenhu mais casa. Meu véio morreu, fui dispejada do barraco onde morava lá na favela. Num tenhu pr´onde í.
- Mas onde a senhora dorme? Não é aqui, porque passo quase todos os dias voltando do serviço à noite e nunca a vi.
- Eu vô pra praça e fico juntu dus zotrus mindigus. Pru causu de qui tenhu medo de arguém fazê arguma mardade pra mim. Tem gente ruim nessi mundu, nê?
Marcos se lembrou das reportagens de TV onde soube de jovens de classe média que atearam fogo em mendigos e arrepiou-se. Ao compreender toda a extensão do drama e da miséria da pobre velhinha, sentiu um nó na garganta e sufocou uma lágrima.
- A se-senhora fa-faz bem. – Gaguejou – Melhor ficar junto dos outros que sozinha.
Sem pensar duas vezes, enfiou a mão no bolso, arrancou de sua carteira as notas de maior valor que possuía, segurou a mão da senhora com a mão esquerda e com a direita colocou o dinheiro nela, cobrindo em seguida com sua própria mão; sentiu que as pessoas passavam e o olhavam junto daquela mendiga, mas não se importou. Naquele momento a sua humanidade falava mais alto.
- É pra senhora. Compre o que quiser.
- Qui Deusi ti bençoe muito, viu mio fio? Lá na praça a gente dividi o qui consiguiu di dia e quem num tivé conseguidu cumê nada pode comprá arguma coisa pra num morrê de fomi. Na rua temus qui ajudá os zotrus colega pru modu de que tem dia qui num se consegui nada. Aí só mesmu quem veve du mesmu jeitu sabi cumé qui é. Já vi gente morrê de friú e de fomi. Mas si eu puder ajudá, num deixu, não. Dividu tudo cuns amigu.
- Tá bom, Dona Maria. Que Deus abençoe a senhora também. Agora tenho de ir ou vou chegar atrasado no trabalho. Fique com Deus.
A velhinha ensaiou um meio sorriso que deixou aparecer suas gengivas sem qualquer dente.
Depois daquele dia, Marcos sempre se aproximava de Dona Maria e lhe desejava um bom dia. Quando não deixava alguns trocados, pois também era moço pobre, deixava algum alimento e fazia alguma mesura com ela.
Passadas algumas semanas, no entanto, não a viu mais. Procurou todos os dias. E uma noite, foi até a praça onde ela dise que se reunia à noite com seus amigos. Tomando coragem, aproximou-se dos mendigos que ficavam deitados perto do coreto que fora cercado de grade pela prefeitura para impedir que eles ali entrassem. E perguntou para o mais próximo deles que se encontrava deitado, enrolado num cobertor:
- Ô moço, o senhor viu por aí a Dona Maria, aquela velhinha que ficava pedindo esmola ali perto da Casas Bahia?
- A Vó Maria? Ela morreu tem uns cincu dias. Foi interrada lá nu cimitério da cidade, como idigente mesmu.
- Você era neto dela?
- Não, sinhô. Todos aqui a chamavam de Vó Maria. Era a mais velha da turma e muito boazinha.
- Que pena. – disse Marcos, a voz sumindo-lhe da garganta, e os olhos marejando-se – Tinha vindo vê-la. Que Deus abençoe sua alma e a receba em Sua paz.
Marcos deu um trocado para o mendigo e foi embora dali, com o coração pesado. Então lembrou-se da primeira vez que vira Dona Maria. E daquilo que o fizera parar: O seu olhar. Vago e desesperançoso. Então lembrou de já ter visto antes olhar semelhante: no rosto de moribundos prestes a morrer. Aquele era um olhar de quem se despedia deste mundo.
Ela se fora. Como antes dela se fora também sua amada avó.
Marcos nunca mais se esquecera da velhinha, e do motivo que o levara a fundar uma associação de ajuda aos moradores de rua. Sabia que para resolver os problemas sociais não bastava ficar reclamando do governo. Começou a fazer sua parte e ficou surpreso de ver que muitos outros também estavam dispostos a colaborar com ele. Após algum tempo conseguira encontrar lares para muitos deles: ou parentes afastados ou abrigos decentes mantidos pelo poder público ou em convênio com a sociedade civil e a iniciativa privada.
Agora era Natal novamente. Tinha reunido muitos amigos para participar da campanha para recolher e distribuir alimentos e roupas. Nem que fosse por apenas alguns momentos, faria aqueles solitários moradores de rua serem um pouco felizes.
Com certeza – pensou – Dona Maria também ficaria contente, se aqui estivessse.