Estilhaços
A fotografia ainda se encontrava no porta-retratos em cima da mesa, exibindo-se indiferente ao olhar que a observasse.
Ela estava lá. E também fora responsável por tudo que acontecera.
Neste momento, não importa mais o que ela representa, os personagens que ela mostra, ou o instante capturado do irrecuperável tempo que se esvaiu de nossas vidas. Não importa nem mesmo os sentimentos vividos ou lembrados por aquelas faces sorridentes, ou o lugar onde se encontravam.. nada importa mais, e é por isso que baixei o porta-retrato, escondendo a foto de encontro à mesa, e porque o atirei à parede, tomado de fúria, depois disso. O instante ainda está gravado em meu cérebro, e com certeza ficará lá como um filme perpétuo a ser projetado na tela de minha mente, enquanto eu viver. Porque nunca me esqueci. Porque nunca me esquecerei.
Ela saía de um táxi, uma chuva fina a alcançava, e preparava-se para correr. Por sorte, eu estava pouco atrás, apressei meus passos e lhe ofereci, com um gesto e um sorriso, carona em meu guarda-chuva até a proteção da marquise mais próxima. Ela hesitou entre a necessidade de se manter seca e a proximidade com um estranho. Mas acho que foi o meu sorriso, acompanhado de uma segurança que me faltara até então, o que conquistou sua simpatia. O destino dela era um pouco mais longo que a marquise mais próxima, motivo pelo qual me regozijei. O meu também o era, e se não o fosse, eu faria com que tivesse sido, tal o prazer que sua proximidade me causara.
Conversamos sobre amenidades, protegidos pelo abençoado guarda-chuva. Então, bem depois, a chuva cessada, passando por uma praça pública onde vicejava um belo jardim,
sabíamos que os nossos caminhos se bifurcariam. E à despedida, ela se postou à minha frente, me deu a mão, e sorriu agradecendo a gentileza. Nossos lábios se calaram e os olhos disseram tudo que havia para ser dito em uma infinidade de possibilidades. Um fotógrafo nos clicou, e nos ofereceu a foto instantâneamente revelada, achando tratar-se de um casal de namorados.
Ela ruborizou-se. Eu gostei da idéia. Comprei duas. Presenteei-a com uma, e fiquei com a outra, esta que atirei na parede. Este é o instante da foto: um casal enamorando-se. O sorriso de ambos, a admiração, a atração e a ternura estampadas em cada face. Foi onde começou nosso relacionamento. Mas onde o mesmo terminara... ainda está fresco e vívido em minha memória, embora eu só queira esquecer os erros cometidos...
Mas não é assim tão fácil. Aliás, nem um pouco.
Tudo cintila com tamanha vividez em frente aos meus olhos que pareço viver ainda os momentos... escuto o barulho do ambiente, percebo os odores exalados no ar, as nuances de luz e sombras, as pessoas que passam ao redor, os carros que cruzam a avenida, o camelô vendendo quinquilharias, e até o pivete que passa correndo um minuto antes de eu ter sido abordado pelo policial e meu mundo ser destruído...
No ápice de nossa felicidade ela vê nossos nomes nos convites de casamento. Sabrina e Túlio. As letras, elegantes, cintilam graciosamente em dourado, prometendo uma vida a dois, a partir da data tão esperada, dentro de poucas semanas.
Ela sorri, feliz. Beijo seu sorriso e fico emocionado. É um dos momentos mais belos de minha vida. Dois dias depois resolvo lhe fazer uma surpresa e passo em seu apartamento. Tenho a chave e entro. O apartamento está vazio, mas ela deveria estar lá. Não está. E o que vejo me assombra e me joga no buraco mais profundo que poderia cair.
Há fotos no chão. Diversas. De uma mulher nua. De um homem nú. De ambos fazendo sexo. O homem me é desconhecido, mas a mulher... é ninguém mais que ela... Sabrina, minha noiva. Meus nervos se abalam, o chão sai de debaixo de meus pés. Busco algum sentido em tudo aquilo e não encontro. No quarto, a cama está desfeita, uma garrafa de vinho aberta e vazia, e por cima dos lençóis, a foto rasgada, aquela mesma foto daquele instante na praça...
A explosão de ira seca minha lágrimas ainda na fonte e endurece meu coração, engessando todo e qualquer sentimento. Saio dali, jurando para mim mesmo que nunca mais a veria.
À noite me ligam do hospital, a telefonista relata que Sabrina está internada e que pede para me ver. Fico irredutível, digo que não sou parente, não quero saber e não irei até lá. Dia seguinte, cancelo todos os preparativos do casamento, me mudo para um hotel, dou ordens à minha secretária e ao porteiro do prédio em que trabalho para não deixá-la entrar, caso apareça. Não atendo suas ligações. O rompimento é total. Não há volta. Não há perdão.
Nos dias seguintes chegam mensagens escritas e de voz, e-mails, cartas, bilhetes. Ignoro tudo. Uma semana depois, enquanto vago a esmo pela rua, um agente policial me reconhece e me detém. Pergunta-me sobre Sabrina. Estranho, e digo que não a vejo mais há cerca de duas semanas. Ele me ordena que o siga até a delegacia. Sem escolha, o faço sem nada compreender. E lá, o investigador responsável me conta que ela fora brutalmente estuprada uma semanas antes, e apresenta o laudo de corpo delito atestando o estupro. Fora um marginal, apelidado Tizil, agora preso. Ele a obrigara a tirar as várias fotos encontradas no apartamento dela. Em seu depoimento ela disse que ele entrara para assaltar a casa e já estava saindo com várias coisas, quando vira a foto dela comigo, no porta-retratos. Então ele voltou...
Senti estar vivendo um pesadelo interminável.
Minha memória vagou rapidamente ao passado, após ouvir o nome do criminoso... Numa noite, voltando do trabalho, próximo a um bar, socorri uma mulher que estava sendo agredida e roubada por um vagabundo. Soquei-o e libertei a vítima... mas não me lembrava disto até este momento.
- Tizil, guarde bem este nome... – gritara o malandro caído ao chão, enquanto eu me afastava o mais rápido que podia.
– ...pois você vai lamentar o resto de seus dias...
Não dei ouvidos e esqueci-me completamente do fato. Até este momento.
Era um pesadelo interminável o que vivia. Sabrina não me traíra, fora vítima de um estupro... O remorso e o arrependimento rasgaram meu coração: ela chamara por mim, pedira minha ajuda, implorara para que fosse até ela. E eu, furioso por um engano, não a atendi.
- Preciso ir até ela. – disse, já saindo, mas o investigador postou-se à minha frente e me impediu.
- Não pode, e é por isto que está aqui.
- Como? Não posso? O que quer dizer?
- Ela foi encontrada nesta noite... morta em seu apartamento. Overdose de tranqüilizantes e soníferos.
Não pude conter as lágrimas.
-Não. Não posso acreditar...
Quanta dor física e emocional ela não teria sentido, até seu último momento de desespero... e eu, em minha cegueira egoísta, me descobria agora como um sujeito bruto e insensível.
Volto atordoado para casa, o porta retratos ainda está em cima da mesa. Atiro-o contra a parede. Mas logo em seguida sangro os dedos nos estilhaços tentando recuperar a foto. Minha dor não é física, mas é real, forte e indescritível...
Um julgamento errado e tudo perdido... para sempre... lamento a perda e a ausência, a dor e a separação, a solidão, o abandono, e a morte...
Caio de joelhos no chão, sem forças, o rosto molhado de lágrimas, segurando em uma das mãos a foto na praça, a nossa foto.
Apenas a escuridão me alcança agora.
Sinto que não há mais nada para viver ou sentir.
Caramba, Ronaldo, que história forte! Ninguém, ninguém mesmo, gostaria de estar na pele do seu personagem. Dói só de pensar!
ResponderExcluirÉ um drama forte, sem dúvida, Hélio. Mas a realidade muitas vezes sobrepuja a ficção: Dramas pessoais, calamidades e desastres acontecem a todo instante. E às vezes, por pouco escapamos de situações terríveis. Por isso naqueles momentos em que nos vemos em situações decisivas de nossas vidas, temos de ter cuidado com as decisões que tomamos. E uma coisa vale considerar: Será que uma decisão motivada pela fúria se manteria quando analisada com calma e uma pitada de sabedoria?
ResponderExcluirAcho que a arte de se relacionar bem com os outros vale ouro. E a de construir para si próprio uma personalidade mais sábia, um tesouro completo.
Grande abraço.