Conheça o Livro Raízes e Asas

Conheça o Livro Raízes e Asas
Clique na imagem acima para visitar o blog de Raízes e Asas
Mostrando postagens com marcador Conto Natal. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Conto Natal. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um olhar inexpressivo



Foi o olhar da velha senhora o que o fez voltar atrás.
Era um olhar vazio, desesperançado, maculado pela dor e tristeza e que naquele momento traduzia a si mesmo em finitude. Marco compreendeu imediatemente. Um lampejo daquela dor e solidão ecoou dentro de si mesmo. Deteve-se no meio da correnteza de gente indo e vindo pela calçada e foi abrindo caminho, desviando-se de um e outro até aproximar-se dela, sentada no chão, num canto, com a mão estendida em busca de um trocado. Ele observou os cabelos dela: um branco-amarelado pela idade, as rugas profundas de seu rosto, as vestes maltrapilhas e a magreza reveladora de sua necessidade de subsistência. Enfiou a mão em seu bolso, pegou algumas moedas e abaixou-se a fim de as depositar naquela mão estendida.
Foi quando Marcos, sem intenção, a fim de que as moedas não caíssem no chão, tocou com a ponta de seus dedos a palma da mão da velha senhora, entregando-lhe as moedas, que sentiu-se comovido por maior compaixão. Naquele instante sentiu o calor daquela mão pedinte como seria o da mão de qualquer pessoa de sua família.

Meu Deus, - ele pensou - é um ser humano quem está aqui, neste estado de miséria e desalento. Esta pobre senhora poderia ser minha mãe ou avó,  e se encontra jogada na calçada, abandonada, sem ter qualquer um que vele por sua vida.
Já cansara de ver mendigos pelas ruas e vez ou outra passava direto sem se importar muito; noutras dava alguma esmola para aliviar um certo sentimento de culpa por olhar alguém em situação tão drástica e nada fazer. Mas nunca sentira algo como agora. Por causa do olhar daquela senhora. Já o vira antes.
Marcos ouviu a senhora agradecer com um Deus te ajude já decorado e recitado mecanicamente inúmeras vezes, mas que revelava gratidão.
Preso à sentimentos contraditórios, afastou-se um pouco, mas uma idéia lhe ocorreu e não permitiu que se fosse: não tinha como minorar o sofrimento daquela mulher pelo resto de seus dias, porque não tinha condição financeira para resolver um problema social imenso como aquele, pois a cada esquina do centro da cidade via um mendigo. Mas e se pudesse lhe comprar a alforria de um dia de liberdade, onde ela não tivesse mais que continuar pedindo e pudesse voltar para casa e descansar um pouco? E se lhe oferecesse o valor que ela demoraria todo o dia para ganhar, se é que viesse a ganhar, estaria ela disposta a abandonar aquela rua naquele mesmo instante e voltar para sua casa?
Marcos calculou: tinha acabado de receber seu salário do mês, podia apertar um pouco as contas e fazer aquela doação. Mas ela aceitaria e compreenderia aquele seu gesto ou não? Marcos agachou-se ao lado da velhinha e disse:
- Senhora, qual o seu nome?
A idosa pareceu não compreender porque um estranho que acabara de lhe dar uma esmola voltara atrás e lhe perguntava seu nome. Sem olhar no seu rosto, respondeu numa voz rouca e cansada:
- Maria, mio fio.
- Ô Dona Maria, vou dar um dinheiro maior pra senhora ir embora pra casa descansar um pouco por hoje. Amanhã a senhora pode voltar. Mas por hoje, quero que a senhora sinta como se já tivesse ganho seu dia e vá descansar. O que é que a senhora acha?
­- Qui Deusi ti bençoe, mio fio. Mais num póssu ir imbora, não. Num tenhu mais casa. Meu véio morreu, fui dispejada do barraco onde morava lá na favela. Num tenhu pr´onde í.
- Mas onde a senhora dorme? Não é aqui, porque passo quase todos os dias voltando do serviço à noite e nunca a vi.
- Eu vô pra praça e fico juntu dus zotrus mindigus. Pru causu de qui tenhu medo de arguém fazê arguma mardade pra mim. Tem gente ruim nessi mundu, nê?
Marcos se lembrou das reportagens de TV onde soube de jovens de classe média que atearam fogo em mendigos e arrepiou-se. Ao compreender toda a extensão do drama e da miséria da pobre velhinha, sentiu um nó na garganta e sufocou uma lágrima.
- A se-senhora fa-faz bem. – Gaguejou – Melhor ficar junto dos outros que sozinha.
Sem pensar duas vezes, enfiou a mão no bolso, arrancou de sua carteira as notas de maior valor que possuía, segurou a mão da senhora com a mão esquerda e com a direita colocou o dinheiro nela, cobrindo em seguida com sua própria mão; sentiu que as pessoas passavam e o olhavam junto daquela mendiga, mas não se importou. Naquele momento a sua humanidade falava mais alto.
- É pra senhora. Compre o que quiser.

- Qui Deusi ti bençoe muito, viu mio fio? Lá na praça a gente dividi o qui consiguiu di dia e quem num tivé conseguidu cumê nada pode comprá arguma coisa pra num morrê de fomi. Na rua temus qui ajudá os zotrus colega pru modu de que tem dia qui num se consegui nada. Aí só mesmu quem veve du mesmu jeitu sabi cumé qui é. Já vi gente morrê de friú e de fomi. Mas si eu puder ajudá, num deixu, não. Dividu tudo cuns amigu.
- Tá bom, Dona Maria. Que Deus abençoe a senhora também. Agora tenho de ir ou vou chegar atrasado no trabalho. Fique com Deus.
A velhinha ensaiou um meio sorriso que deixou aparecer suas gengivas sem qualquer dente.
Depois daquele dia, Marcos sempre se aproximava de Dona Maria e lhe desejava um bom dia. Quando não deixava alguns trocados, pois também era moço pobre, deixava algum alimento e fazia alguma mesura com ela.
Passadas algumas semanas, no entanto, não a viu mais. Procurou todos os dias. E uma noite, foi até a praça onde ela dise que se reunia à noite com seus amigos. Tomando coragem, aproximou-se dos mendigos que ficavam deitados perto do coreto que fora cercado de grade pela prefeitura para impedir que eles ali entrassem. E perguntou para o mais próximo deles que se encontrava deitado, enrolado num cobertor:
- Ô moço, o senhor viu por aí a Dona Maria, aquela velhinha que ficava pedindo esmola ali perto da Casas Bahia?
- A Vó Maria? Ela morreu tem uns cincu dias. Foi interrada lá nu cimitério da cidade, como idigente mesmu.
- Você era neto dela?
- Não, sinhô. Todos aqui a chamavam de Vó Maria. Era a mais velha da turma e muito boazinha.
- Que pena. – disse Marcos, a voz sumindo-lhe da garganta, e os olhos marejando-se – Tinha vindo vê-la. Que Deus abençoe sua alma e a receba em Sua paz.
Marcos deu um trocado para o mendigo e foi embora dali, com o coração pesado. Então lembrou-se da primeira vez que vira Dona Maria. E daquilo que o fizera parar: O seu olhar. Vago e desesperançoso. Então lembrou de já ter visto antes olhar semelhante: no rosto de moribundos prestes a morrer. Aquele era um olhar de quem se despedia deste mundo.
Ela se fora. Como antes dela se fora também sua amada avó.
Marcos nunca mais se esquecera da velhinha, e do motivo que o levara a fundar uma associação de ajuda aos moradores de rua. Sabia que para resolver os problemas sociais não bastava ficar reclamando do governo. Começou a fazer sua parte e ficou surpreso de ver que muitos outros também estavam dispostos a colaborar com ele. Após algum tempo conseguira encontrar lares para muitos deles: ou parentes afastados ou abrigos decentes mantidos  pelo poder público ou em convênio com a sociedade civil e a iniciativa privada.

Agora era Natal novamente. Tinha reunido muitos amigos para participar da campanha para recolher e distribuir alimentos e roupas. Nem que fosse por apenas alguns momentos, faria aqueles solitários moradores de rua serem um pouco felizes.
Com certeza – pensou –  Dona Maria também ficaria contente, se aqui estivessse.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Um de meus contos será publicado pela Editora Andross no livro abaixo:

RÉQUIEM PARA O NATAL - CONTOS DE TERROR DE NATAL
Org. de Edson Rossatto

SINOPSE: Natal. Época de paz, amor e fraternidade. Mas não para você. Esqueça-se de tudo que seus pais lhe contaram quando criança e prepare-se para conhecer o lado negro do Natal em 53 histórias sobrenaturais, de suspense e de terror. Nada de amor e fraternidade. A única paz que encontrará aqui é a paz eterna. Atreva-se a abrir este presente.
Lançamento do Livro em 07/12/2008
das 17h00min às 20h00min
LOCAL: Espaço WN
Rua Jorge Augusto, 668 - Vila Matilde
São Paulo - SP
Os livros poderão ser adquiridos inicialmente no local do lançamento e no site da Editora Andross: www.andross.com.br, ou pessoalmente comigo (tenho apenas vinte exemplares)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Décimo Segundo Mês - Um Conto de Natal

Conto publicado no livro Contos Selecionados de Novos Autores Brasileiros,

pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores


by Ronaldo Souza







Arduamente, durante onze meses, eu trabalho. Onze meses em que vivo, dia após dia, com apenas um objetivo: alcançar o décimo segundo mês. Por que só aí me realizo.

As pessoas gostam de mim. Principalmente as crianças. Estas, quando me vêem, abrem largos sorrisos. Exclamam. Surpreendem-se. Um brilho nasce em seus olhos. Correm em minha direção, a qualquer custo. Eu as abraço, brinco, ouço o que têm para me dizer. Por elas vale meu esforço. Sua alegria contagia minhas ações. Todos gostam de mim.

Observo minhas doces crianças. Desde cedo elas aprendem a me amar. Terna e calorosamente eu as acalento. Na infância não há discriminações. Não há etnias, cores, credos, classes. Todas são simplesmente... crianças.

No décimo segundo mês, eu as tenho bem próximo de mim. Vivo intensamente estes instantes. Cada olhar, cada sorriso é precioso e único. E eu sei que em suas vidas eu só tenho este curto espaço de tempo: o décimo segundo mês. Ainda assim, não para sempre. À medida que crescem, vão se esquecendo, tornando-se adultas, até não mais lembrar, ou terem apenas uma vaga lembrança de minha presença e de seus sonhos infantis, os primeiros e verdadeiros sonhos de suas vidas. Outras crianças nascem, clamam por mim, mas sinto a falta de cada uma daquelas crianças tornadas adultas. Esqueceram-se dos momentos simples e felizes de seu passado. Quando tudo que precisavam para ser feliz... era ser feliz.

Mas me sinto triste e só. Em algum ponto, sinto que fracassei. Porque de cada sorriso que acalento, de cada pequeno anjo que embalo, sei que tantos outros foram perdidos, selvagemente arrastados pela correnteza maligna, e não os pude salvar. Aqueles que estão em meus braços são apenas os sobreviventes...

Eu tenho sido tão só. Tristemente só. Desdobro-me em mil ações. Mas sou apenas um. Durante onze meses, todos me esquecem. Onze meses de trabalho árduo, economizando cada centavo. Eu não os esqueço. Eu trabalho por todos.

Em meu íntimo, tenho chorado. Durante onze meses de trabalho, assisti pelo mundo crianças violentadas, exploradas, escravizadas, torturadas e mortas. O motivo? Guerras. Tráfico. Crimes. Até mesmo o trabalho árduo e precoce. E a visão distorcida, predatória e brutal do sexo.

Algumas foram anjos que voltaram mais cedo aos braços de Deus, outras são ainda flores sendo sugadas, descoloridas, pouco a pouco esmagadas. São sonhos que murcham numa terra cinza, sem nunca conhecer o azul do céu...

Toda minha luta é para trazer luz novamente à esta terra, colorindo o seu céu com um lindo arco-íris...

Arduamente trabalho durante onze meses. Para viver. Para não lembrar dessas crianças que se foram, e das que são consumidas e devoradas, sem a lembrança da humanidade.

Trabalho, e continuo assim. Até o décimo segundo mês.

Hoje é o último dia. Hoje se completam onze meses. Aguardo as 18:00hs. Recebo meu último pagamento do ano. Reúno todas minhas suadas economias. Compro todos os presentes que meu dinheiro pode comprar. Porque amanhã é outro dia. Amanhã é o décimo segundo mês.

O amanhã chega afinal. O hoje torna-se o décimo segundo mês. Posso voltar a ser eu mesmo. Embora a idade avance, o tempo passe, sou eu e ninguém mais aqui dentro de mim, vivendo minha própria verdade.

E a minha verdade é esta: dar o que reuni, dar o que sobra e o que falta, dar de mim mesmo e fazer parte do outro. Porque estou dando além da matéria: estou distribuindo esperança, plantando amor, espalhando alegrias... sementes para um amanhã mais feliz.

Assim, boto o saco nas costas e continuo meu caminho: o caminho do décimo segundo mês.

Passo por todos os lugares: onde há arvores decoradas e luzes brilhantes, ou onde somente há a escuridão da desesperança;

Onde há ceias e troca de presentes, ou onde sequer há solidariedade ou uma troca de olhares...

Mesmo corroído por dentro, lastimando a sorte dos inocentes perdidos e dos que ainda estão acorrentados, vou arrastando minha vida, neste tão esperado décimo segundo mês. Até que ouço um grito:

“Papai” – e um pequeno sorriso correndo em minha direção – “Papai” – os gritos ecoam alegremente, iluminando meu ser, desfazendo o cinza de meu interior, recriando um sol a iluminar meus sentidos e minha vida, então ouço novamente a pequena garotinha gritar, de novo, excitada e alegremente: “Papai”... “Papai” e vejo seus bracinhos se abrindo, velozmente vindo em minha direção.

Então não resisto, a abraço amorosamente, e as lágrimas rolam em meu rosto. Mas preciso sorrir, afinal é o décimo segundo mês. É Natal.

E meu nome... meu nome é Noel...